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Inquietações

Inquietações

01
Jul24

Coração fora do peito

Liliana Rodrigues

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É onde menos se espera que encontramos. E foi ali, num lugar de dor e de medo que encontrei a alegria e a força. Todos as pequenas conquistas são celebradas como uma euforia, e quase histerismo, de quem ganha o maior dos prémios. E é.

Lutas são travadas não por guerreiros ou militares, mas pelas mais inexperientes pessoas. Não são usadas armas de fogo ou bombas, mas lutam com todas as forças que têm e com as que não têm também.

Uma força sobrenatural nasce dentro do peito. Uma certeza inabalável de que a vitória é certa apodera-se. E, embora as forças físicas comecem a desvanecer, somos invadidos por uma energia extraordinária.

Estamos em junho e lá fora a chuva cai. Dizem os entendidos que o tempo está estranho e que não é normal para a época. O que importa quando a normalidade nos foi arrancada?

Temos o coração fora do peito. Numa mesa de bloco operatório. Numa cama de cuidados intensivos. O coração a pulsar tenuamente ao ritmo da chuva que cai.

Frágil. Disrítmico. Pulsa com a força que Deus lhe dá. E que força.

Um coração seguro pelas mãos de quem dedica a sua vida a cuidar das vidas de outros. Um coração que faz o nosso pulsar mais forte e mais lentamente ao ritmo de si mesmo. Um coração fora do peito.

Encontrei coragem, força, amor e esperança num lugar asséptico, cheio de normas e procedimentos. Um lugar que tinha tudo para ser frio e regulamentado. Mas, não.
Encontrei sorrisos e felicidade. Encontrei empatia, simpatia e compreensão. Encontrei amor.

Estou do outro lado, do lado de quem luta, com o coração fora do peito e vejo tantos outros corações fora do peito como eu. E, os corações unem-se. Os corações que temos fora e os que estão dentro, numa comunhão de corações.

Todos temos corações feridos. Todos somos cuidados. E, todos cuidamos. Sem a distinção mesquinha que o ser humano inventou para nos afastar uns dos outros. Somos melhores juntos.

Os corações pulsam ao ritmo do amor que nos nutre a alma e o corpo. Em uníssono. Apenas o amor a pulsar. O amor paciência, resiliente, resistente e autêntico.

Lá fora o tempo não é o normal para a época do ano. Chove e faz frio. Para nós, os com o coração fora do peito, a normalidade não é normal. A normalidade é viver intensamente o presente.

Nada é dado como adquirido e tudo é motivo de contemplação e regozijo. Vivemos com o coração fora do peito e esse é o nosso maior poder.

A todas as mães e pais de crianças com patologia cardíaca.

 

(Imagem do Google)

24
Jun24

À deriva

Liliana Rodrigues

 

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Navego à vista numa vida de imprevisibilidade. Os ventos e a corrente da independência afasta-me aos poucos do porto. E, a terra fica cada vez mais longe.

Ao deixar o porto julgava ser mais fácil navegar. Tinha lido todos os livros e diários de bordo de navegadores experientes e conceituados. Estava enganada.

Revejo mentalmente os seus ensinamentos à procura de uma estratégia de navegação. Manuseio os instrumentos que recomendam. Nada.

Olho para o céu através do astrolábio. Confirmo com a bússola. Nada. Ou estou noutro hemisfério ou algo de errado se passa. Nada coincide. Nada faz sentido.

O vento sopra. As velas esticam. O coração acelera. O barco ganha velocidade. O céu enegrece. Ao longe os clarões anunciam a tempestade.

- Recolham as velas e virem o leme 45° a estibordo.

Espero que seja o suficiente para evitá-la. Certa de que vou contorná-la seguro o leme com a força que Deus me deu. Em vão.

Sou arremessada contra o chão, como se um farrapo fosse. Tento levantar-me, mas a tempestade sacode e sacode a embarcação. Seguro-me onde posso. Com o que posso: a vida.

Uma voz grita-me desesperada.

- Deixa-te ir. Confia

Mas, a minha fraqueza teima em ignorá-la. Tento endireitar o leme. Mantê-lo seguro para não naufragar. Temo perder o controlo.

Ingénua. Controlo foi sempre o que nunca tive. Deixei-me controlar pela ilusão de que, de alguma forma, ainda tinha algum controlo. Estúpida. Esse foi o meu grande erro.

Ergo-me ao leme. Fecho os olhos. Nenhum diário de bordo nos prepara para navegar neste mar. Deixo que os braços se movam ao ritmo da tempestade. Relaxo.

Ouço a voz novamente. Navego à vista. Pouco importante o destino agora desde que me mantenha à tona.

A tempestade fui eu que a criei. Confio. Descanso. Ao longe vejo terra.

 

(Imagem do Google)

03
Abr23

Nasci Maria

Liliana Rodrigues

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Que estranho mundo este em que a imagem vale mais que mil competências. Um mundo onde uma embalagem tem mais importância que o conteúdo. Onde a inteligência é medida pelo perímetro abdominal. Onde o profissionalismo é avaliado pela forma de um corpo.
Juro que pensei que, ao longo destes anos, a mentalidade tinha evoluído. Mas, como estava enganada. A mulher contínua a ser julgada e avaliada, pelo que veste e pela forma que o seu corpo tem. Pouco importa a capacidade, inteligência, profissionalismo, dedicação, adaptabilidade, resiliência, persistência ou qualquer outro atributo. No final, só tem relevo as medidas certas e o tipo de vestimenta.
Não há lugar para mulheres com corpos com as marcas: das vidas que geraram, das doenças que enfrentaram, dos descontrole hormonais ou das formas que herdaram. Não é considerado bonito. Não é considerado atraente.
Os tempos mudaram, mas perdura a forma como se veem as mulheres: um adorno. Um objeto que se quer agradável à vista. Um corpo que se possa exibir. Algo que se possa apreciar. Desejar.
Será apenas essa a importância da mulher na sociedade que se diz evoluída? Serão as mulheres menos vistosas, seja lá isso o que for, menos capazes que as outras? Menos competentes? Menos criativas? Menos mulheres?
A esses iluminados, que se acham no direito de criticar ou inferiorizar alguém pela a aparência, convido-os a olharem-se ao espelho. Olhem-se bem e sigam a mesma grelha de avaliação que usam para os outros. Sejam sinceros e digam se são o pináculo da perfeição.
Basta de bodyshaming. Basta de comentários depreciativos sobre o corpo e a forma de vestir. Parem com os conselhos infelizes e inapropriados. Quem julgam que são? Que direito têm em opinar sobre o corpo de alguém?
Sabem lá quantas mulheres sofrem em silêncio por não encaixarem nos padrões? Sabem lá quantas mulheres se sujeitam a dietas e exercícios malucos só para serem aceites? Sabem lá o sofrimento que causam só por tecerem reparos “inocentes” e “bem- intencionados”.
Sempre ouvi dizer que “de boas intenções está o inferno cheio” e se “os conselhos fossem bons não se davam, vendiam-se”.
As mulheres não são peças de decoração. As mulheres não são objetos para serem exibidos. As mulheres não são só embalagens. Quem não sabe apreciar uma mulher em toda a sua plenitude e pelo que é tem um problema. E não, não estou a falar do ponto de vista de orientação sexual porque se for só desta forma, então o problema ainda é maior.
Elas têm estrias, curvas grandes, cicatrizes, manchas, tamanhos diferentes e, ainda assim, são perfeitas. As mulheres são competentes e capazes o suficiente para serem o que quiserem. Elas são como a malagueta. Dão uma flor delicada, mas o seu fruto não é para qualquer um.

 

16
Mar23

Morro de medo

Liliana Rodrigues

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Nunca tive grandes medos. Sempre achei que seria capaz de enfrentar qualquer obstáculo ou adversidade que a vida colocasse no meu caminho. Talvez por ingenuidade ou por irresponsabilidade típica. A verdade é que vieste mudar tudo isso. As certezas dissiparam-se e o medo instalou-se.

Quando te ouvi pela primeira vez senti um frio percorrer-me a espinha. Um tornado de emoções formou-se. Regelei.

Senti dores, como se também eu estivesse a nascer naquele momento. A verdade é que nasci contigo. Não estava preparado, embora tivesse planeado tudo ao mínimo pormenor. O controlo fugiu-me assim que o nosso olhar se cruzou. O medo instalou-se.

Sabia que agora dependias de mim, mesmo que nesta fase dependesses mais dela. Sabia que tinha responsabilidades para contigo, maiores do que alguma vez imaginei. Gigantes. Monstruosas. Assustadoras.

Pensei que com o tempo o meu medo diminuiria. Que ingénuo. O meu medo cresce ao mesmo ritmo que tu. Molda-se como a plasticina com que brincas. Vejo-te a brincar com os medos que carrego e escondo-os para que não percebas como sou vulnerável.

Quero ser a tua bússola quando perderes o rumo. O teu porto seguro quando enfrentas a adversidade. O teu farol no meio da escuridão da tristeza. Quero puder ser o que precisas e quando precisas. Morro de medo.

O medo de não conseguir garantir o necessário. O medo de não proporcionar o extraordinário. O medo de não conseguir o mundo para ti. O medo de não estar à altura, de te falhar ou desiludir o coração que bate fora de mim.

Não consigo explicar o amor que sinto por ti ou descrever o medo horrível que sinto em mim. Em silêncio, nos bastidores da tua vida, tento ser melhor a cada dia. Por e para ti. Perdoa-me se estou a falhar.

Com amor do teu pai.

 

 

(Imagem retirada do Google)

 

08
Mar23

Porta entreaberta

Liliana Rodrigues

 

Bebo mais um gole de vinho enquanto a observo. A forma como se apresenta leva-me a fantasiar com o que esconderá. Em que mundos me fará entrar? Que segredos ocultos esconderá? Algo nela me atrai tanto como me intimida.

O conflito entre o que conheço e o que ela esconde adensa-se. Ajeito-me na cadeira, observando-a. Seduz-me desavergonhadamente balanceando-se lentamente. Retribui o olhar curioso, como que questionando a minha coragem.

Aqui sei com o que posso contar. Sei exatamente o que esperar dia após dia. A estabilidade do que tenho é confortável. Aborrece. Adormece. Mata.

Sabes que preciso de mais e aproveitas-te disso. Deleitas-te com o que despertas em mim. Provocas-me aguçando-me os sentidos. Gemes liberdade que me excita. Escondes de mim o que sabes que desejo.

Fechas-te quando me aproximo. Testas-me os limites. Fazes prova das minhas reais intenções. Abres-te só um pouco. És cruel. És maravilhosa. Levas-me a questionar quem sou, o que mereço, a vida e a existência de um deus.

Bebo mais um gole. Começo a sentir-me num buraco sem saída. O fundo do poço para onde me deixei cair. Fazes-me pensar duas vezes. Peso a vida na balança enquanto o vento te faz revelar mais um pouco do que tentas esconder. Ordinária.

Ordinária, é como é a minha vida. Simplesmente, ordinária. Igual a tantas outras. Sem emoção. Sem sabor. Sem cor. Sem vida. Merda.

Quero mais. Quero-te. Bebo o que resta pelo gargalo. Tive mais do que tempo para me preparar. Vou com o que tenho e o que não tenho arranjo só para ti.

A porta está entreaberta. Abro-a com a força que nunca pensei ter. Sorvo o ar descolando os pulmões colapsados contra as costelas. Finalmente cheguei à morada antes por ti vedada. Sou livre a viver os meus sonhos e elevo-me ao extraordinário.

 

 

 

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(Imagem retirada do Google)

02
Mar23

Mais um dia

Liliana Rodrigues

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Mais um dia que começa. Mais um para juntar a lista infindável de dias. Confesso que já vivi na ânsia por mais e mais dias. Agora não. Levam-me para a sala a que chamam da televisão. Curiosamente, não tem televisão. Talvez já tivesse tido, em tempos.

Permaneço imóvel e em silêncio grito a angustia que me percorre as veias. Ouço as conversas de quem ainda tem assunto. Contorço-me solitariamente na cadeira. O bafio a morte incomoda-me.

Foi apenas mais um para quem trata de mim. Para mim não. Tenho-os visto chegar e a ir primeiro que eu. Que injustiça.

Alguém me pergunta o que quero para o pequeno almoço. Como se isso importasse alguma coisa. Será, como sempre, um pão com manteiga e uma caneca de leite com um café desenxabido. Não esperam pela minha resposta e mecanicamente servem-me o que não pedi enquanto conversam sobre as suas vidas.

Tento chegar à caneca para matar a secura que me queima por dentro. O corpo, que já não é o meu, teima em não ajudar. Derrama-se sobre a mesa a mistela. Alguém reclama enquanto me enfia comprimidos na boca. Tenho que engolir.

O longo dia avança sem uma palavra sobre a morte que paira no ar. O silencio é ensurdecedor. Não quero estar aqui, mas também não quero voltar para o quarto. O que quero pouco importa. Há rotinas a cumprir e está na hora.

Olho para a cama vazia onde o ele perdeu a vida esta noite. Ainda sinto a presença da dama da foice. Sinto-a a rondar-me com o desdém de quem não me quer. Tal como outros. Serei para ela também um fardo? Não chega já? Que posso eu esperar mais com 99 anos? Estou cansado, mas tudo o que me resta é esperar. Adormeço para não acordar.

 

(Imagem retirada do Google)

21
Fev23

Meu amigo

Liliana Rodrigues

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Nem sempre foste o meu objeto favorito, confesso. Com o passar do tempo comecei a ver-te de outra forma. Talvez a tua importância seja menosprezada ou não precisem de ti tanto quanto eu. Se teria o mesmo resultado utilizando uma alternativa? Sim, mas não era a mesma coisa.

Lembro-me como se fosse hoje a primeira vez que te vi. Achei que algo tão frágil não poderia fazer a diferença. Naquela altura, só tinhas utilidade em duas situações. Nem mais nem menos. Apenas duas. Redutor.

Com o tempo, ganhei confiança em ti. Começaste a acompanhar-me para todo o lado. Onde quer que fosse levava-te comigo, nem que fosse apenas um pedaço.

Vem-me à cabeça memórias felizes contigo. Ajudaste-me a fechar uma janela, que o vento teimava em abrir. As gavetas plásticas que consertei contigo. Funcionaste melhor que qualquer botão ou linha de costura, numa farda gasta pelo tempo. Contigo fui capaz das maiores invenções que nenhuma engenharia seria capaz de explicar.

Sinto que te tive sempre: nos bons e maus momentos. E, como tivemos maus momentos. A minha admiração e respeito foram aumentando. Afinal, não eras um objeto qualquer. Dependendo da marca de fabricante, podias mesmo ser incrível. Claro que não colavas cientistas ao teto, como a outra, mas és cá um pedaço fantástico.

Acho que com o tempo conseguiste dar-me a volta e se, o que sinto, não é amor anda lá perto. Se não te tenho sinto-me desamparada. Gosto de ti, não importa como. Tecido Não tecido. Silicone. Hipoalergénico. Transparente. Comum. Comum perfurado. Adoro-te em todos os tamanhos e materiais.

Não é poético, eu sei, nem tem que ser. Ensinaste-me que não se deve menosprezar nada porque tudo é necessário e que o banal pode ser incrível se virmos todo o seu potencial.

Para o querido adesivo.

(Foto do tejadilho do meu carro)

 

 

10
Fev23

Desabafo de um herói cansado

Liliana Rodrigues

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Sempre soube que o meu destino seria diferente das demais pessoas. Nunca pensei que fosse assim. Não estava preparado. Ninguém me informou. Sofri várias metamorfoses ao longo dos anos. Para quê ou para quem, sempre foram uma não questão. O meu propósito sempre foi claro como a água. Pessoas, sempre foi pelas pessoas.

Ao início sentia-lhes a gratidão e era alimentado por ela. A sua gratidão enchia-me de uma força titânica, capaz de enfrentar os inimigos mais temíveis e vencer. Sem pestanejar jogava-me para a frente do que quer que fosse. Precisava da gratidão como do ar para viver. Não eram necessárias grandes demonstrações de agradecimento, um simples “obrigado” bastava-me.

Nunca quis grandes reconhecimentos. Fugia deles como o diabo da cruz. Chegava-me a satisfação de ter feito a diferença positiva na vida de alguém. As coisas mudam muito depressa. Talvez, tudo isto soe a paleio fiado. Conversa de quem se queira esquivar. Não é verdade.

A gratidão foi substituída por exigência. A minha obrigação é ser herói a tempo inteiro. Sem tempo nem espaço. Sem pessoa que sou. O “obrigado” foi substituído pelo “até que enfim” ou “não foi mais do que devias fazer”.

Dou por mim a questionar porque ainda o faço. Tamanha ingratidão enfraquece-me. É a minha kryptonite a tornar-me vulnerável. À lembrança vem-me as metamorfoses que fui obrigado a sofrer. As feridas e fraturas que o meu ser suportou. Enrolo-me prostrado sentindo o calor a esvanecer-se do corpo. Sinto a alma a fraquejar.

Estou que nem me sinto. As certezas tremem e a dúvida instala-se. Para quê? Para quem? A resposta torna-se diferente. Não quero salvar pessoas. Elas não querem ser salvas. Na minha fraqueza encontro a minha humanidade e redefino o propósito. Talvez não tenha que ser super-herói para salvar, mas sim para não me perder.

 

(Imagem retirada do Google)

 

26
Jan23

Carta ao meu neto

Liliana Rodrigues

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Querido neto,

Pensei muito antes de te escrever. Queria dizer-te tanto, mas tudo o que consigo, neste momento, é pedir que me desculpes. Há muito tempo que tinha decidido fazê-lo, mas ainda não era o momento.

Lembro-me de quando chegaste da escola calado e com o olhar esquivo. Senti que precisavas do colo da avó. Tivemos uma longa conversa sobre o teu dia, de como te sentiste quando te chamaram (…) e como isso te fez sentir mal. Acolhi-te nos meus braços enquanto choravas. O meu coração partiu-se nesse momento. Dava tudo para ter ficado com a tua dor, mas não pude.

Ver-te a sofrer daquela forma, com apenas cinco anos de idade, doeu. Dilacerou-me. Queria puder estar à altura de te dar os melhores conselhos, mas não estive. Perdoa-me, meu querido.

Recordo-me daquela vez em que ficaste sem rumo quando a rapariga acabou com o namoro. Choraste da mesma forma, como quando tinhas cinco anos; no meu colo. Permaneci calada a afagar-te o cabelo. Poderia ter-te dirigido tantas palavras de conforto, mas não o fiz. O meu coração quase que parou nessa altura. Um jovem adulto a sofrer por amor. Eu, uma velha, sem nada para te dizer. Desculpa, meu amor.

A verdade é que, nem sempre tive as palavras certas para amenizar as tuas dores. Não, por não ter estudos, mas por não saber como fazê-lo. Quando vemos alguém que amamos a sofrer, sofremos ainda mais. Sentimos a sua dor e ela funde-se com a nossa: a dor da impotência. A dor de não ser mais do que um colo para chorar.

Talvez o amor seja apenas isso: ter um colo onde poder chorar. Sofro com a dor de não o poder ser eternamente.

 

 

(Imagem retirada do Google)

 

 

 

 

19
Jan23

Nas teias da vida

Liliana Rodrigues

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O monte de papeis amontoa-se junto ao computador. Enterro, o mais que posso, a cara no ecrã e digito, a toda a velocidade, a informação necessária. Pela pequena janela do escritório entram os primeiros raios de luz. Estou atrasada. Merda.

O som da chuva a bater no vidro chama-me a atenção. Paro. No canto superior esquerdo da janela, uma pequena mosca caminha delicadamente sobre uma teia de aranha. Parece invencível ao evitar ficar presa. Parece. Segundos depois, debate-se com todas as suas forças para se libertar. Como é que aconteceu?

Como é que me aconteceu? Ainda há pouco tempo vivia cheia de sonhos e ambições. Certezas irrefutáveis, aquelas que todos os jovens têm. Esperanças tolas de conseguir mudar o mundo. Inventar o impossível. Como é que aconteceu?

A vida, a minha vida, é em tudo semelhante à daquela mosca. Presa nas teias da vida. Debatendo-me por me manter livre. Lutando para sobreviver num mundo cada vez mais hostil. Contorcendo-me com a força que me resta. Esperando que a aranha se atrase a aplicar o golpe final.

Dei por mim a torcer pela mosca. E, sabe Deus, como elas me enojam. Quis que se soltasse, como que por milagre. Desejei que saísse vitoriosa e que tivesse outra oportunidade. No fundo, desejei para a minha vida.

A aranha espreitou. Foi-se aproximando à medida que a mosca se cansava. Como que maquiavelicamente, observou-a. Era capaz de jurar que sorriu perante a cena. Esfregou as patinhas e… já não havia salvação.

Olhei para o relógio e definitivamente estava atrasada. Atrasadíssima. Ao contrário da mosca, ainda tinha força para lutar. Prometi que não iria ter o mesmo fim. Não tão cedo. Abri um novo documento e comecei a escrever com um novo tema. Imprimi. Assinei. Voei para longe.

 

(Imagem retirada do Google)

 

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