Reflexo no vidro
(imagem retirada do Google)
Olho a imagem que o pedaço de vidro me reflete. Não consigo compreender o que está diante de mim. Como é possível tanta dor e tanta angustia? Como? Como é possível existir tanta gente que sofre? Como é possível alguém aguentar? Como é que se sobrevive ao que se vive? Mas não há Deus justo neste mundo?
Fecho os olhos e sacudo a cabeça, como se afastasse estes pensamentos, mas é em vão. Sinto um sabor amargo, a boca fica seca e procuro um pouco de água para beber. Nem uma única gota de água disponível. Engulo em seco a minha raiva; a minha frustração.
O nó na garganta incomoda e dificulta a respiração. Levo a mão ao pescoço como que a tentar aliviar a obstrução que se intensifica. Tento controlar a respiração antes que desmaie. Olho de novo para o vidro. Observo.
Vejo a imagem de três crianças a descer a rua. Vêm a conversar entre si, duas delas abrandam o passo e, quando a terceira fica à sua frente, puxam a mochila. A criança desequilibra-se e cai no chão. As duas crianças riem e riem e não a ajudam a levantar. A imagem desvanece.
A sala está cheia de pessoas que aguardam a reunião. Duas delas cochicham entre si. Olham com desdém para alguém no lugar da frente. O director chega e cumprimenta essa pessoa. As outras duas tecem comentários injuriosos e invejosos, espalhando boatos a quem está à sua volta. A imagem é sucedida por outra.
Alguém trabalha afincadamente num projecto extremamente importante para a recuperação da empresa. Trabalha tanto que não tem tempo para a família nem para si próprio. É um projecto inovador, ambicioso e que irá salvar a empresa. Pede a um colega que dê uma vista de olhos antes de o apresentar à direcção. Três dias depois o colega é promovido com a apresentação do seu projecto. A imagem é substituída pelo meu reflexo.
O que se faz quando se é confrontado com a realidade? Com a triste realidade humana? Qual é o gosto? A que sabe?
Nascemos seres de luz e com o tempo vamos deixando de brilhar. Somos seres livres desde a nascença e com o tempo tornamo-nos escravos das nossas escolhas, das nossas atitudes, de nós mesmos. Nascemos a saber amar e com o tempo desaprendemos.
Como é possível tanta dor e angustia? Como é possível mudarmos tanto a nossa natureza? Como é possível procurarmos a culpa fora de nós, quando ela está dentro? Como é possível sermos tão cegos?
A imagem que vejo é mais do que o meu reflexo. É a resposta mais difícil às minhas perguntas mais fáceis.