Um dia como os outros
Acordo para mais um dia de trabalho. Um dia que, embora igual a tantos outros, será desafiante e único: um teste. Mais um teste à resiliência, à adaptabilidade e à empatia. Todos os dias são iguais e simultaneamente tão diferentes. Suspiro.
À porta, a minha filha agarra-se à minha perna e pede-me para não ir. Pergunta-me porque tenho que ir trabalhar e argumenta que não quer “dinheirinhos” e nem coisas novas. Explico-lhe que tenho pessoas doentes para cuidar. Ela, de olhos brilhantes e tristes, diz que precisa que cuide dela. O coração torna-se do tamanho de um grão de mostarda. Engulo em seco e saio de casa.
Atrás de mim fica um criança a chorar e um marido que a consola tentando, também ele, se reconfortar. Os tempos são de fragilidade, de ansiedade, incompreensíveis e não lineares. O medo da separação aumenta, quando os números da pandemia começam a subir. Vive-se a incerteza a cada “até logo”.
Os papéis estão definidos e cada um sabe o lugar que terá que assumir caso a mãe tenha que voltar a ser só enfermeira. Já não precisamos de falar, os olhares dizem tudo o que as palavras não conseguem expressar.
Visto a farda branca, que nunca chego a despir, e sou a melhor profissional que posso ser. Mobilizo conhecimentos, relaciono sinais e sintomas com possíveis diagnósticos, atuo de acordo com as situações e tento ver através dos olhos dos outros.
Talvez seja um dia igual a tantos outros, mas aquela pessoa fez ressonância em mim. Aquela menina fez-me lembrar a minha filha. Aquele pai dedicado e preocupado fez-me imaginar as dificuldades sentidas pelo meu marido. Aquele homem que trabalha de dia e de noite, colocando a sua saúde em risco, para que nada falte aos seus, remete-me para o meu pai. E aquela senhora muito preocupada com os outros e que, tantas e tantas vezes, se esquece de si recorda-me a minha mãe.
É impossível cuidarmos dos outros sem ser, nem que seja só um pouco, tocados pelos outros. Tudo isto, torna a profissão tão bonita como difícil. Temos que ser o melhor profissional de enfermagem que podemos, sabemos e conseguimos por baixo da fina farda que protege a pessoa que somos.
O dia de trabalho aproxima-se do fim. Já perdi a conta das vezes que me agrediram verbalmente ou que colocaram em causa a profissional que sou. Faço por ignorar, tentando proteger-me por baixo da fina farda, pois compreendo a dor, o medo e a frustração que a doença provoca nas pessoas. Mas dói. Preparo-me para cuidar do próximo doente, respiro fundo e penso em coisas felizes. Sorrio.
O turno chega ao fim. Retiro a fina farda deixando a descoberto as feridas e as dores resultantes de um dia de trabalho. Mais uma luta ganha por hoje, mas a batalha nunca será vencida. Haverá sempre alguém vítima da doença e alguém que a ajude a combater.
Chego a casa. A minha filha já dorme. Hoje não houve história de adormecer e nem beijinho de boa noite. Mais uma vez a mãe chegou tarde do trabalho. Olho nos olhos do meu marido que me abraça com amor. Bebo um chá e adormeço no conforto do seu colo. Daqui a umas horas começa tudo outra vez.
Vou iniciar mais um dia igual a tantos outros, sem reconhecimento, valorização e justa remuneração da profissão, mas singular como as pessoas de quem cuido.
Aos meus colegas enfermeiros, um feliz dia igual a tantos outros, assim como diferente de tantos outros.